Entrevista: Gustavo Infante, violão, busca e Transe


Por Pedro Cezar – Coletivo Corrente Cultural

Depois de alguns meses, extasiado pelas audições das músicas lançadas por Gustavo Infante no final do ano passado, um fluxo de curiosidade, carinho e amizade inspirou essa entrevista. Era a vontade de saber o ‘por quê’, o ‘de onde’, o ‘quem te soprou?’ e outras perguntas que emergiam a cada replay pela internet. Um violão tão bem tocado que chega a hipnotizar. Letras e intenções que nos tiram do lugar comum e nos devolvem refeitos. Sem exagero. Bastou mergulhar em seu último trabalho, o EP Transe, e minha admiração por esse sempre jovem músico (sobretudo no meu imaginário) aumentou e ganhou outra dimensão. Principalmente por reconhecer que um conterrâneo ultrapassou todas as expectativas, nos apresentando um panorama de possibilidades antes invisíveis, agora materializadas em canto, ancestralidade, respeito e transgressão. Vento – brisa delicada e tempestade, ao mesmo tempo. Natureza em elementos tantos. Pra quem conhecia seu jeito de fazer música, desde as primeiras demos da Mekanos, dá pra enxergar quebra, dá pra ver continuidade, dá pra sentir liberdade. Evolução em todos os aspectos. “Acho que estou aprendendo a organizar todo meu pensamento”, disse ao final das perguntas, enquanto na minha cabeça surgiam muitas respostas. Confira a entrevista na íntegra.

 

Gustavo Infante lançou o EP Transe ao final de 2016 com participação da percussionista e compositora Livia Carolina.

 

– De onde surgiu a ideia de gravar o EP Transe?

No segundo semestre de 2014, eu e a Livia Carolina começamos uma imersão em nossas canções autorais que envolviam a temática dos orixás. Até 2016, foi criado por volta de vinte canções e chegamos num ponto em que precisávamos mostrar esse material que estava nos movendo. O primeiro passo foi em agosto de 2016, com o lançamento de uma série de vídeos ao vivo no meu canal do YouTube com a direção de vídeo da Carol Neumann (quatro canções foram filmadas em espaços alternativos e nove canções em um ensaio no estúdio – essas basicamente como uma maneira de registrar a pré-produção, um registro mais cru de todo o processo que estava acontecendo, de maneira a trazer o público para mais perto da gente, no próprio ambiente do ensaio). O EP Transe foi o segundo passo de desaguar essas canções, com o lançamento nas plataformas virtuais em 17 de novembro de 2016. Do repertório que tínhamos, foram escolhidas com muita dureza quatro canções que coabitam no universo do Transe – a música originando um estado alterado da consciência, um outro estado de abstração do mundo interior para o exterior, a música nos levando para fora de si, a potencialização da sensibilidade pela música, a sintonia com algo transcendente, a produção de imagens vindas do nosso estado mais primitivo – costurando e dialogando com a mitologia dos orixás.

– e o encontro com os momentos de ‘transe’ – ou dessa comunhão mais profunda com a música – é uma busca sua (e da Livia) de outros tempos ou foi um acontecimento, um acender de um pavio?

Acredito que a chama sempre esteve acesa na gente: composições mais antigas como “Mar de Morros” (2008), “Vida Roda” (2010), “Santinha” (2010) também trazem esse caráter mesmo que de forma mais sutil. Mas talvez a chama tenha se espalhado quando eu conheci o terreiro de candomblé da nação Xambá (Olinda/Pernambuco), em 2012, com o Quinteto ColoQuial. Esse ponto foi o começo de um novo olhar para essa busca que você pergunta, que já acontecia há alguns anos, mas que passou a envolver o diálogo direto com a mitologia dos orixás. Agora apenas para contextualizar a citação do Quinteto ColoQuial – é um grupo que fez uma pesquisa com a música tradicional brasileira, principalmente com o Coco do litoral e do interior do Nordeste e manifestações de religiões afro brasileiras. Sou violonista desse trabalho que atualmente está inativo, porém o trabalho foi concretizado com o lançamento do CD “Mergulho” (2013).

– o “Mergulho” realmente chamou atenção de quem acompanha seu trabalho; talvez porque conhecíamos mais sua atuação na guitarra do que no violão. Houve uma transição ou você ainda se divide entre os dois instrumentos?

Sempre ‘mexi’ com os dois instrumentos. O violão naturalmente foi ganhando mais a minha atenção, principalmente, depois que entrei na faculdade de música. Ainda toco a guitarra, mas é esporádico. Atualmente não tenho nenhum trabalho que envolva a guitarra, o que contribui para eu pegar menos no instrumento. Espero ainda experimentar mais coisas na guitarra como tenho feito com o violão no EP Transe, buscando uma maneira própria de me acompanhar.

– você falou que em 2012 visitou o terreiro de candomblé da nação Xambá, em Pernambuco, e que isso despertou em você um novo olhar, e refletiu diretamente na sua forma de compor e interpretar. Como é a conversa interna entre a sua criação católica e o contato com a mitologia dos orixás? O que isso representa pra você hoje?

A primeira reação ao entrar nesse novo campo foi de olhar o lugar da minha origem, questionando, e até mesmo ressignificando. Nunca fui praticamente do catolicismo, apesar de ter passado por todas as fases (batismo até a crisma). Internamente foi um choque e uma redescoberta de olhar para a essência humana. Falo em choque, mas ao mesmo tempo me identifiquei com aquilo tudo, foi paradoxal mesmo, forças contrárias, que acabaram sendo reverberadas nas canções. Hoje representa pra mim uma busca de me conhecer mais profundamente, a minha essência que pode me transformar para melhor. Uma maneira de expressar uma liberdade.

– e quando você transformou tudo isso em música, qual foi a reação das pessoas mais próximas e daquelas que já acompanhavam seu trabalho?

Quando cheguei com as canções, aconteceu um estranhamento por parte dessas pessoas. “Da onde você tirou essas coisas de macumba?”; “Qual a razão de cantar isso agora?”. A maioria que acompanhava meus trabalhos antigos não tinha contato com esse ‘Brasil’. Mas foi importante pra mim esse estranhamento para que houvesse diálogo com essas pessoas mais próximas, de maneira a clarear suas ideias.

– e o que falta pra nós, brasileiros, tomarmos mais contato com esse ‘Brasil’? É responsabilidade de quem?

Na minha opinião o que falta é oportunidade para as pessoas tomarem contato, por experiência própria. É de responsabilidade do governo, pensando agora, de maneira a potencializar tudo que envolve a cultura, as políticas culturais. Pois, com uma cultura mais forte respeitaremos mais as diferenças que nos distanciam e que ao mesmo tempo também nos unem.

– voltando ao EP Transe, vocês gravaram ao vivo? Quais foram as dificuldades que vocês encontraram em estúdio para conseguirem um registro fiel à proposta?

A proposta enquanto sonoridade foi de trazer para o fonograma o clima, o “transe”, que tínhamos durante os ensaios. Por isso resolvemos desde a captação até a masterização optar por elementos que trouxessem uma certa crueza, sem a “maquiagem” do estúdio. Daí gravamos ao vivo o violão e a percussão. Depois gravei a voz por cima. No começo era pra ser tudo ao vivo, mas por termos pouco tempo no estúdio, resolvemos fazer dessa maneira pra aproveitar ao máximo o que tínhamos disponível lá.

– e rolou uma ajuda ‘luxuosa’ ou ‘providencial’, meio sem querer, no meio do caminho né?

Nesse processo dessa busca de uma crueza, de uma sonoridade viva, durante a mixagem, demos a sorte do Ivan Vilela ter dado uns toques de mixagem para o Pedro Florio (quem captou e mixou), em um dia no estúdio, sem compromisso! O Ivan estava gravando lá (Estúdio Cajueiro) e o Pedro mostrou o som para ele, que acabou sugerindo elementos na mixagem, que fez toda diferença pra trazer a nossa proposta.

– o Ivan tem um trabalho que interliga cultura popular, música e tradições do interior, inovações instrumentais e diálogo com o meio acadêmico. Isso também é uma influência? Você está em um trabalho de Mestrado, o que te levou a isso?

É uma influência sim, pois até faço o mestrado na Unicamp sobre o violão de acompanhamento de Dorival Caymmi, pioneiro nessa questão que interliga cultura popular com inovações instrumentais. O que me levou ao mestrado foi a vontade de me aprofundar em algo que me toca artisticamente, e naturalmente o Caymmi apareceu. E também a vontade de aumentar o meu senso crítico, minha reflexão sobre o fazer musical.

– e essa sua pesquisa sobre o Caymmi trouxe/traz reflexos pra tua forma de tocar e compor? O Transe surge nesse contexto?

Eu acredito que traz sim. Percebo com a pesquisa que o Caymmi buscava um jeito dele, próprio de se acompanhar, trazendo elementos, por exemplo, da capoeira para o violão. Eu penso que é um jeito muito bacana de apropriação, e de se criar uma nova maneira de tocar, de olhar para o instrumento. Não sei se consigo, de verdade. Mas eu tento!

– e se pensar todo esse seu momento de ‘auto-reinvenção’ como um novo caminho em sua trajetória de músico e compositor, onde gostaria de chegar?

Busco ser um artista mais consciente da cultura brasileira, aprofundando nas múltiplas cores que tem a nossa música. Também gostaria de chegar num ponto de transformar essas cores numa maneira minha de tocar, compor, pensar música.

– esse ponto está longe?

Acredito que posso chegar perto, mas é complicado de se atingir esse ponto. Nunca ficamos satisfeitos, sempre queremos nos reinventar, fazer de um jeito que vai nos tirar do conforto, do chão.

– você faz parte de uma geração de artistas poços-caldenses que enxergaram mais possibilidades de desenvolver um trabalho autoral, como há muito tempo não se via. Depois de algum tempo de estrada como avalia todo esse processo?

Em retrospecto, pensando agora, acho que sempre partiu de uma busca interna. Uma descoberta vai movimentando outra e o processo é continuo. Ao mesmo tempo em que descobrimos musicalidades diferentes, passamos a nos enxergar melhor como ser humano.

– e, na sua música, a vivência em duas cidades bem distintas – Poços e Campinas – influencia?

Ambas as cidades influem sim. A influência de Campinas vem através da vivência na faculdade, da pesquisa, dos encontros musicais. De Poços é diretamente dos amigos, da família, das paisagens, de lembranças. Acredito que as duas cidades se encontram na música sim, uma por via de uma coisa mineira mesmo que é natural de mim, simplesmente sai algo de Minas sem esforço musical ou pessoal… e já a via de Campinas acho que é representada por esse caráter mais ‘experimental’ (não sei se é uma boa palavra!, mas foi o que me veio agora).